No mundo todo, mulheres anônimas estão tirando a roupa e se deixando fotografar. Muitas fazem isso em nome de uma ideia. Outras, por pura vaidade.
MARTHA MENDONÇA

PELO TIME
Bárbara Santiago, de 24 anos, da seleção feminina de rúgbi. O calendário de 2009 foi feito para levantar dinheiro para as viagens do time
Bárbara Santiago, de 24 anos, da seleção feminina de rúgbi. O calendário de 2009 foi feito para levantar dinheiro para as viagens do time
Há duas semanas, o Instituto Nacional do Câncer (Inca), uma das entidades de saúde mais respeitadas do país, lançou um calendário com imagens sensuais estrelado por mulheres de 42 a 65 anos – algumas delas ex-doentes. “Elas são vaidosas e querem mostrar que estão com tudo em cima. Se pudessem, posariam com menos roupa”, afirma o idealizador e produtor do calendário, Eduardo Araújo. No ano passado, a seleção feminina brasileira de rúgbi também mostrou o que há por baixo dos uniformes das esportistas, num calendário especial cujo objetivo era arrecadar fundos para as viagens do time.
Os exemplos são muitos e não param no Brasil. Incentivadas pelo governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, ambientalistas americanas entre 44 e 78 anos posaram sensualmente para o calendário Mulheres preservam a Terra. Queriam angariar fundos para hortas comunitárias.
A inspiração, naturalmente, vem de mulheres famosas. Todo ano, atrizes e modelos posam nuas por causas nobres. Alicia Silverstone já foi fotografada como veio ao mundo em defesa do vegetarianismo. Uma das estrelas de Lua Nova, da saga Crepúsculo, Christian Serrato, fez campanha em dezembro, nua, contra o uso de peles de animais. A modelo polonesa Joanna Krupa posou como anjo nu, em 2009, em defesa dos cãezinhos abandonados. Na próxima semana, será a vez da subprefeita de São Paulo, Soninha Francine. Aos 42 anos, ela aparecerá sem roupa num calendário da ONG CicloBR, que promove o uso de bicicletas.
Nem sempre, porém, há uma boa desculpa (ou uma causa meritória) em nome da qual se exibir. No mês passado, a revista Time Out, de Nova York, convocou leitoras a posar nuas jogando pôquer. Quatro delas, mães, toparam o desafio, sem nenhuma justificativa grandiloquente. Apenas curtiram a ideia de se mostrar peladas em uma revista de grande circulação. Anos atrás, esse tipo de atitude seria condenada socialmente com veemência. Hoje em dia, banalizou-se. O fenômeno da exposição das mulheres comuns, as chamadas anônimas desinibidas, é uma realidade aparentemente irreversível. Pode ser explicado, em parte, pela ruptura do espaço privado que caracteriza nossos tempos. A busca pela fama, os reality shows, as redes sociais da internet oferecem às pessoas comuns um ambiente, um exemplo e uma justificativa para exibirem o corpo em atitudes sensuais. Para quem tem uma causa, o motivo é ainda mais simples: o corpo feminino chama mais a atenção do que qualquer outro tipo de objeto de campanha, beneficente ou não.
O filme Garotas do calendário, de 2003, deu um belo empurrão nesse tipo de projeto. No longa-metragem inglês, um grupo de senhoras da Grã-Bretanha se cansa de arrecadar recursos com chás de caridade e decide fazer algo ousado: um calendário em que elas próprias são as modelos, seminuas, cada uma mostrando suas prendas domésticas. “Hoje há um culto ao exibicionismo, especialmente relacionado ao corpo. Tudo que envolve corpo é vendido. Há prazer nisso para quem vê e para quem mostra”, diz a psicanalista Elizandra Souza, da PUC de São Paulo.
A sexóloga carioca Regina Navarro Lins, autora do best-seller A cama na varanda, soma ao momento de superexposição da privacidade um olhar mais natural sobre o corpo humano, resultado das últimas décadas de liberação sexual. Esse processo, não à toa, é mais feminino do que masculino. “Historicamente, a mulher está passando do horror ao corpo a sua extrema valorização”, diz. A pesquisadora lembra que na Idade Média havia freiras que passavam anos sem tomar banho para não ter contato com o próprio corpo e também porque cuidar dele configurava pecado grave. Hoje, ocorre o oposto: a ênfase estética, dietas, os treinamentos e plásticas. Tanto esmero para tornar o corpo perfeito não faria sentido se este não pudesse ser exibido – se não publicamente, ao menos para quem gostaríamos que o apreciasse.

MOTIVOS DIFERENTESRegina Araújo, de 42 anos (acima), do calendário 2010 do Instituto Nacional do Câncer. Abaixo, uma das anônimas fotografadas pelo americano Matt Blum. Há de tudo no universo da nudez

No último Natal, a bancária carioca Rita Meneses, de 25 anos, deu para o namorado um álbum de fotografias dela mesma, nua. Em cada página do ensaio, feito num estúdio no Rio de Janeiro, trechos de canções de Roberto Carlos. Foram produzidas 200 fotos. Ela escolheu as 20 melhores. “Ele adora ver revista de mulher pelada. Por que não pode ser eu?”, diz Rita. Camilla Carvalho, sócia do Up Studio, diz que a procura por esse tipo de serviço aumenta todos os meses – especialmente depois que o assunto foi tratado em horário nobre. Na novelaViver a vida, da TV Globo, uma das personagens é uma fotógrafa que faz books sensuais. “Posar nua, maquiada, produzida, eleva absurdamente a autoestima dessas mulheres”, diz Camilla, cuja clientela vai dos 25 aos 60 anos.
Mostrar-se bela e desnuda tem hoje uma ligação simbólica cada vez maior com a feminilidade. Até então, posavam nuas apenas as beldades famosas, objetos do desejo nacionais, mundiais. Ao fazer a mesma coisa, mulheres comuns sentem fortalecido seu poder de sedução. “Essas fotos são a oportunidade perfeita para mostrarmos ao mundo o que temos a oferecer”, disse Stacey Linden, professora, de 36 anos, uma das mães que apareceram nuas na Time Out. Diz a sexóloga Regina Navarro: “O que ela quer dizer com isso? Que os homens muitas vezes procuram um erotismo nas revistas sem saber que podem obtê-lo em sua própria parceira. A mulher de hoje quebrou o tabu da esposa santa versus a prostituta da rua. Essa dupla moral foi dissolvida”.
Por que, diante de tanta liberdade para escolhermos nosso estilo de vida sexual e o modo de gerenciar nossos corpos, a exibição ainda nos parece tão sedutora? A psicanalista Gisela Haddad, autora de Amor e fidelidade, lembra que o recato foi, por muito tempo, um imperativo da vida das mulheres. “Cobrir as partes do corpo que pudessem lembrar qualquer sinal de êxtase visava acalmar as pulsões eróticas femininas e masculinas. Agora, a mulher foi eroticamente emancipada”, afirma. Essa é uma visão otimista do fenômeno. Outra, defendida pela feminista americana Naomi Wolf, é mais sombria. A autora de O mito da beleza diz que a obsessão feminina com a aparência é uma espécie de jaula mental que mantém as mulheres aprisionadas depois de já se terem libertado de várias outras ideologias que as mantinham subordinadas, como a castidade e passividade. “A ideologia da beleza é a última das antigas ideologias femininas que ainda tem o poder de controlar aquelas mulheres que o feminismo teria tornado relativamente incontroláveis”, escreve Naomi. “Entre mulheres que trabalham, têm sucesso, existe uma subvida secreta que envenena nossa liberdade: é um escuro filão de ódio a nós mesmas, obsessões com o físico, pânico de envelhecer e pavor de perder o controle.” Contra essas angústias, uma receita possível parece ser tirar a roupa e sorrir para as lentes da câmera. Com ou sem justificativa.
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