sábado, março 13, 2010

Viver ao lado dos animais selvagens - Gente - DN


viver ao lado dos animais selvagens

por ISADORA ATAÍD
viver ao lado dos animais selvagens
Antes de tudo, gostar de animais. Gostar para ter disciplina para tráta-los, manter o olho atento para os comportamentos inesperados e reconhecer as diferenças com o homem.


Na instalação seca, três leões-marinhos ladravam de excitação frente à agitação e ao odor de Helena, anunciando um parto prematuro. Do lado de fora, treinadores e veterinário optaram por chamar ajuda extra quando as barbatanas, ao invés da cabeça da bebé, apareceram. A treinadora Nela Oliveira, 41 anos, temeu que a placenta pudesse rebentar antes da chegada dos reforços. Os leões-marinhos abriram espaço para Nela fazer o parto, Helena fazia força e a tratadora puxava pelas barbatanas do leão-marinho fêmea, hoje Taka.
O dragão-de-komodo não se mistura com a malta do reptilário. Segundo a sua tratadora, Susana Silva, 38 anos, não se incomoda por viver só. Diga-se que não há alternativa, já que a saliva do agressivo dragão está repleta de bactérias que provocam infecções e levam à morte as suas presas. Embora pareçam compenetrados, os dragões do Jardim Zoológico de Lisboa reconhecem Susana pelo seu cheiro. O Bima, que foi transferido para a Indonésia, sua terra natal, costumava espirrar, como quem dá boas--vindas, quando Susana chegava .
Os leões ou gostam de brincar ou são mesmo ardilosos. Já lá vão mais de 20 anos, mas a recordação acompanha Aires Colaço, 47 anos, tratador dos felinos. Um jovem macho precisava de ser apanhado para um tratamento de rotina. Como o animal era pequeno e evitar o uso de medicamentos é uma das preocupações do zoo, Aires escolheu a rede. Quando entrou na instalação, o tratador percebeu a armadilha. Deparou-se com um leão adulto de orelhas baixas, sinal inequívoco da posição de ataque, a rede não cabia sequer na cabeça do animal. As pernas só lhe começaram a tremer depois de Aires sair da jaula. Foi preciso calma e agilidade para sair em segurança.
O rinoceronte-indiano fêmea Teja é preguiçoso e adora maçãs no lanche da tarde. Um dia, a tratadora Anabela Oliveira, 35 anos, estava a alimentá-la quando uma peça rebolou da caixa. Mal pensou ir buscar o fruto e Teja já estava em pé, receosa que lhe fossem tirar uma maçã sequer. "A regra fundamental dos tratadores do Jardim Zoológico de Lisboa é que lidamos com animais selvagens, que podem ter comportamentos inesperados por mais que estejam familiarizados com os tratadores. É uma actividade que exige gostar dos animais e respeitá-los, um aprendizagem que não se esgota", afirma Anabela.
Na infância, Nela ensinava os coelhinhos bebés da quinta dos avós a saltarem e surpreendia-se com os burros, que ao ouvirem a voz da avó se metiam no cabresto. Trabalhou em escritórios e no comércio até assistir a um show dos golfinhos-de-miami, aos 23 anos. "Quando vi os treinadores na água com os animais, a dúvida entre bióloga e veterinária dissipou-se. O que eu gostava era da relação com os animais e queria ser treinadora. Candidatei-me a uma vaga e fui aceite; após oito meses estava a apresentar-me. No delfinário tratamos e treinamos os animais. Num mundo egocêntrico como o nosso, a principal qualidade aqui é olhar o animal, perceber as suas necessidades", sublinha.
A formação na Escola Agrícola da Paiã ensinou Susana a lidar com os animais domésticos. As cabras e ovelhas da quintinha do Jardim Zoológico foram os primeiros animais a receber os cuidados da tratadora. O convite para o reptilário foi um desafio, mas também a assustou - como a maioria dos humanos, partilhava o terror pelas cobras e lagartos. A formação no reptilário de Perugia, na Itália, modificou a sua visão e preparou-a para as pitões, crocodilos e hidrossauros. Para além de alimentar os animais, observá-los atentamente, "não vá a constipação da pitão transformar--se numa broncopneumonia", Susana interage com os visitantes. "Gosto de ensinar as crianças sobre os hábitos e a alimentação destes animais. Explicar sua importância para o ambiente. Sem o contexto do Zoo, seria impossível dar a conhecer tal variedade animal."
Carne de cavalo é a preferida dos tigres-da-sibéria. Aires não facilita o quotidiano da família, um casal e duas crias fêmeas. Põe a carne em sacos de fibra vegetal e esconde-os no cimo de uma árvore ou entre a vegetação. Trata-se do enriquecimento ambiental, ou seja, proporcionar aos animais espaço e actividades semelhantes ao seu habitat. Aires é criativo e colhe cocó de coala para deixar os leões "loucos". Canela e coentros mantêm os tigres-de- -samatra em movimento e um tronco de eucalipto ocupa os filhotes. Aos 18 anos, depois de terminada a tropa, um passeio pelo Zoo de Lisboa encantou Aires. Na mesma tarde preencheu a ficha de inscrição e uma semana depois tratava da jardinagem. Mas eram os animais que o seduziam e conquistou um lugar entre os carnívoros. Ao longo dos anos foram muitos os cursos de formação frequentados por Aires, mas para ele é o gosto pelos animais e a experiência que definem um tratador. "Quando um animal se isola, não come ou não urina, é porque algo não está bem. Nos filhotes não podemos deixar o nosso cheiro, porque correm o risco de ser abandonados pela mãe. Não há relação de proximidade, são animais selvagens e observar é decisivo. O tempo e a dedicação ensinam a lidar com os animais."
Anabela cresceu no Zoo. O pai era motorista e entre os seis e os 17 anos viveu com a família numa das habitações destinadas aos funcionários. O trajecto para a escola era de aprendizagem e dedicava-se a reconhecer as espécies. Na altura, um macaco que roía as unhas era o seu predilecto e os barridos dos elefantes a assustavam. O quiosque África, dentro do Zoo, foi o primeiro emprego, em compasso de espera para uma vaga entre os tratadores. Começou com as aves e orgulha-se de ser a primeira mulher a tratar dos animais de grande porte. Girafas, zebras, rinocerontes e bisontes fazem parte da sua rotina. Admite uma paixão pelos ocapis, com quem partilha segredos e por vezes faz desabafos. Retornou faz pouco da licença de maternidade, e os animais tiveram de reaprender a sua voz e o seu cheiro.
Anabela não sente qualquer contradição pelos animais que tanto estima estarem foram do seu habitat original. "Muitos deles nasceram aqui, não possuem outra experiência. São muitas as iniciativas de enriquecimento ambiental, de modo a deixar o dia-a-dia dos animais o mais semelhante possível ao seu ambiente natural. Para além de todo o controlo médico e alimentar, o alto índice de fertilidade indica que eles são felizes. Mas, sem dúvida, o trabalho dos tratadores, a qualidade da relação que estabelecemos com os animais, faz a diferença", garante a tratadora.
O leão-marinho Max sofre de anemia, e a cada manhã Nela esconde as vitaminas na cabeça do carapau. Cereja, uma rã-tomate, teve 340 filhotes após Susana ter simulado a estação das chuvas. A estratégia será repensada este ano. Aires está preocupado em manter as crias longe do pai para que não ocorram anomalias genéticas entre os tigres-da-sibéria. Anabela observa o veterano António Marques, chefe dos tratadores dos herbívoros, cortar as unhas dos rinocerontes. A qualidade de vida dos animais do Zoo de Lisboa depende da interacção com os tratadores. Cumprir rotinas alimentares e de higiene, manter o olho atento para comportamentos inesperados, cultivar o afecto e conhecer os limites que separam os animais selvagens dos seres humanos são alguns dos pressupostos dos tratadores. "Os animais só têm posturas agressivas quando algo os perturba, não são maus", conclui Nela.

DN

Sem comentários:

Enviar um comentário