domingo, maio 22, 2011

A memória da vida e da morte





A Acção Animal lançou uma campanha contra a tourada. Começo por dizer que não acho legítimo que se ponham, com se põem neste vídeo, em pé de igualdade os direitos das mulheres aos direitos dos animais. Uma sociedade que comece a equiparar estes direitos chega a um beco sem saída. Se aos animais aplicarmos os direitos humanos estaremos a fazer um paralelo que retira aos humanos toda e qualquer ideia de civilização. Ou seja: toda e qualquer ideia de ética e de moral.


O que confere direitos especiais à nossa espécie é exactamente ser a nossa espécie. Dotada de consciência colectiva, de memória e de cultura. Defendo que os animais são sujeitos de direitos e que esses direitos são culturalmente mutáveis. Respeito e compreendo quem ache a tourada um espectáculo bárbaro. Mas humanizar os animais, do ponto de vista dos direitos, é a pior forma de fazer este debate. Além de tornar a coerência de posições absolutamente impossível, relativiza e banaliza a própria noção de direitos humanos.

Se o anúncio quer apenas dizer que a “tradição” não é argumento que chegue para defender a tourada, assino já por baixo. Mas dizer isso não fecha a conversa. Porque ser tradição também não é argumento que chegue para condenar a tourada. Interessa saber o que quer dizer esta tradição.

E foi exactamente isto que tentei debater num texto que publiquei, a 5 de Julho de 2002, já lá vão cinco anos, no jornal “Público”. Nesse texto discordava da posição do Bloco de Esquerda sobre o fenómeno de Barrancos. Estávamos em plena polémica sazonal sobre a matéria e o Parlamento preparava-se para legislar sobre o assunto.

Publico aqui um excerto desse texto que tinha como título “Barrancos e o Direito à Memória”. O excerto é aquele que não trata da questão da autoridade do Estado em Barrancos nem dos touros de morte, assunto que então apaixonava a discussão e que, na introdução, considerei não ser o essencial. Como esta campanha agora demonstra (e ainda bem), o essencial era então e é hoje a aceitabilidade ou não da tourada nas sociedades modernas.

Aqui vai, recordado que é outro o contexto. Entre parênteses rectos está uma parte que por falta de espaço saiu do texto publicado à data.

«Não estão em discussão os direitos dos animais. Se estivessem, coerentemente se estaria a debater a proibição da tourada, toda ela. O touro sofre mais na espera pela morte do que com a morte na arena. Se estivessem, o transporte de animais e o tratamento indigno na indústria pecuária seria a prioridade. Se estivessem, seria discutida a forma de garantir a sobrevivência da espécie depois do fim da única actividade que garante a sua existência.

Não está em causa o argumento da tradição. Tradições há muitas. Há quem apedreje mulheres adúlteras, há quem dê vinho crianças de tenra idade, há quem ofereça as suas filhas em troca de um dote. Não defendo a tradição por ser tradição. O mundo muda e devemos lutar para que mude. (...)

O que está então em discussão?

A legitimidade do espectáculo da violência. A tourada é uma encenação da relação violenta do homem com a natureza. É a arqueologia rural dessa relação. A celebração da morte e a celebração da vida, da sobrevivência e do domínio do homem sobre as forças naturais. De um tempo em que o homem dependia desse domínio para sobreviver. Dir-se-á que esse é hoje um espectáculo anacrónico. Será, mas da sobrevivência destes sinais do passado depende a sobrevivência de uma memória que favoreça a relação directa com a natureza.

[E é porque, demasiadas vezes, nos esquecemos dessa dependência que, no processo de industrialização, vamos destruindo todos os recursos como se deles não dependesse a sobrevivência da nossa espécie. Celebrar a morte de um animal é celebrar a nossa vida. Humanizar os animais é esquecer esta relação de dependência física. Quando tratamos os animais como se fossem humanos estamos a levar a nossa arrogância ao limite: achamos que podemos negar aos animais os seus instintos e aos homens a sua condição de predadores. A pergunta é esta: saberão hoje as nossas crianças que não é a maldade que faz um animal matar o outro? Que a natureza não se rege por regras morais e que é essa a absoluta excepcionalidade da espécie humana? Os paralelos entre os as regras de convivência humana e a natureza podem parecer sedutoras, mas são assustadoras. Parecendo que entregam ao mundo animal a cultura humana, retiram aos homens toda a sua história.]

A tourada é um sinal de resistência à industrialização da vida e da morte. O espectáculo da morte do touro, em Barrancos, é em tudo semelhante ao da matança do porco, é aquele que nos mostra de onde vem a nossa vida, que nos diz da nossa dependência em relação à natureza. Na matança do porco, a celebração é privada e familiar, na matança do touro ela é pública e comunitária.

É também a resistência de uma cultura rural em relação a uma cultura urbana. A cultura da cidade e do domínio tecnológico sobre a natureza é, não escondo, mais tolerante e multicultural. Mas ela aflora, neste como noutros casos, uma hegemonia intolerante e insensível aos processos de afirmação de identidade do mundo rural.»


Sem comentários:

Enviar um comentário