domingo, maio 22, 2011

Barrancos e o Direito à Memória

Por Daniel Oliveira - 2002

Cabe primeiro um esclarecimento: sou militante e dirigente do Bloco de
Esquerda, mas escrevo aqui a titulo pessoal. O Bloco, tal como foi sempre a sua
posição, votará contra o regime de excepção para Barrancos. Compreendo e tenho
consciência que ela é coerente com uma posição largamente maioritária entre os
aderentes, dirigentes e base social de apoio do meu partido. No entanto, discordo
dela. Sei que a minha posição é bastante minoritária no BE e não dramatizo a
discordância, mas torno-a pública por que acho que é assim que as coisas se
devem passar. Não há nenhum tipo de centralismo (democrático ou burocrático)
no BE e vemos com naturalidade as divergências. Tenho também consciência de
que este não é um assunto central da política portuguesa. Por isso, interessa-me
mais discutir o que está por detrás dele.

Não estão em discussão os direitos dos animais. Se estivessem, coerentemente se estaria a debater a proibição da tourada, toda ela. O touro sofre mais na espera pela morte do que com a morte na arena. Se estivessem, o transporte de animais e o tratamento indigno na indústria pecuária seria a prioridade. Se estivessem, seria discutida a forma de garantir a sobrevivência da espécie depois do fim da única actividade que garante a sua existência.
Não está em causa o argumento da tradição. Tradições há muitas. Há quem apedreje mulheres adúlteras, há quem dê vinho crianças de tenra idade, há quem ofereça as suas filhas em troca de um dote. Não defendo a tradição por ser tradição. O mundo muda e devemos lutar para que mude.
Também não é a autoridade do Estado que está em questão. Nenhum Estado pode fazer uma população inteira cumprir uma lei. É inviável e para uma desobediência generalizada apenas se podem encontrar soluções políticas e negociadas.

O que está então em discussão?

A legitimidade do espectáculo da violência. A tourada é uma encenação da
relação violenta do homem com a natureza. É a arqueologia rural dessa relação. A
celebração da morte e a celebração da vida, da sobrevivência e do domínio do
homem sobre as forças naturais. De um tempo em que o homem dependia desse
domínio para sobreviver. Dir-se-á que esse é hoje um espectáculo anacrónico.
Será, mas da sobrevivência destes sinais do passado depende a sobrevivência de
uma memória que favoreça a relação directa com a natureza. Ela é um sinal de
resistência à industrialização da vida e da morte. O espectáculo da morte do touro,
em Barrancos, é em tudo semelhante ao da matança do porco, é aquele que nos
mostra de onde vem a nossa vida, que nos diz da nossa dependência em relação à
natureza. Na matança do porco, a celebração é privada e familiar, na matança do
touro ela é pública e comunitária.

É também a resistência de uma cultura rural em relação a uma cultura urbana. A
cultura da cidade e do domínio tecnológico sobre a natureza é, não escondo, mais
tolerante e multicultural. Mas ela aflora, neste como noutros casos, uma
hegemonia intolerante e insensível aos processos de afirmação de identidade do
mundo rural. Não me esqueço dos argumentos das inenarráveis associações de
defesa dos direitos dos animais, que apresentavam como contrapartida ao
"obscurantismo" barranquenho facilidades de acesso à Internet. Como se
estivéssemos todos a caminho de um estado de civilidade natural, a que os f+bcromagnonsf-
b raianos teriam escapado.

E isto levanta a segunda questão importante: quais são os limites ao
multiculturalismo? Em que medida pode uma sociedade tolerar fenómenos
contraditórios no seu interior? Não tenho, nesta matéria, posições
fundamentalistas. Pode e não pode, depende dos limites. Trata-se de um processo
difícil de negociação e auto-regulação. Os limites são, para mim, os dos direitos
humanos. Defendo a minha cultura naquilo que pense que ela é, do ponto de vista
civilizacional, emancipadora para o conjunto da humanidade. Lutarei contra a
ofensa dos direitos humanos e dos direitos das mulheres, contra a perpetuação de
relações de exploração e domínio sobre o outro, mesmo que sejam ancestrais
tradições de outras culturas. Não aceito que o multiculturalismo ponha em causa
direitos adquiridos na sociedade em que vivo e sinto-me na obrigação de apoiar
todos os que, noutras civilizações, lutem pela sua conquista. Das mulheres no
mundo muçulmano aos condenados à pena de morte nos Estados Unidos.

Perante estes pressupostos, não me parece normal que a sociedade portuguesa
entre em crise porque, numa terra perdida e entalada entre duas culturas, existe
um hábito de difícil digestão para a maioria do país. Sobretudo quando as festas
de Barrancos são a única forma de afirmação e dignidade que resta àquele povo.
Penso mesmo que neste caso há um excesso de zelo e um desrespeito pela
diversidade cultural que advém de um mito: que o território português é culturalmente uniforme.
Disto isto, espero que o poder político tenha o bom senso de, caso mantenha a proibição dos touros de morte em Barrancos, encontrar uma solução negociada com aquele população.
Não ficarei, não poderei ficar, a aplaudir um batalhão da GNR que ali vá impor a lei e a ordem. Não é essa a minha cultura.
 

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