domingo, outubro 09, 2011

Vegetarianos há mais de um século




A primeira associação nasceu há cem anos no Porto. Amanhã é dia mundial do vegetarianismo, um regime com cada vez mais adeptos
Gabriela Oliveira*

Desengane-se quem pensa que só há poucos anos os portugueses descobriram o regime vegetariano, o estilo de vida vegano ou fruti-crudívero. Em plena revolução da República, também se discutia dietética e ética à mesa, argumentava-se a favor de uma alimentação baseada em cereais, frutas e legumes, que banisse do prato a carne e o peixe. Por influência de movimentos vegetarianos que surgiam em vários países da Europa, também em Portugal, por volta de 1908, começava a 'revolução' vegetariana.
Pinhões, castanhas, frutas secas, aveia, farinhas integrais, pão de glúten, vinho sem álcool, azeite sem acidez - a lista de alimentos recomendados para uma alimentação sã era extensa. Já na altura se dava importância aos sumos naturais e se comercializavam «marmitas» para cozer legumes a vapor (as famosas panelas Hygie).

O grande impulsionador do vegetarianismo e naturismo foi o médico Amílcar de Sousa, que vivia no Porto e conseguiu mobilizar outros médicos e personalidades da burguesia portuense para «o estilo de vida natural e saudável». Em 1911 foi fundada a Sociedade Vegetariana de Portugal pelo comité que publicava a revista O VegetarianoUma publicação mensal que chegava a vários pontos do país e tinha assinantes no Brasil e nas colónias, especialmente em Angola e Cabo Verde.  A associação  chegou a registar mais de três mil sócios, corria o ano de 1914.



Hotel Vegetariano

Em 1913 abria com alarido o Grande Hotel Frutí-Vegetariano, a dois passos da estação de São Bento no Porto! Uma pensão naturista, situada no número 26 da Rua dos Caldeireiros, que ocupava quatro pisos e chamava a si o mérito de ser «a primeira casa fundadora da cozinha vegetariana» e o único estabelecimento do género em Portugal. O hotel, equipado com «uma sala de jantar decorada com gosto e belas paizagens», recebia «comensais» com mensalidades a partir de «13$00 reis», anunciava O Vegetariano.

Na mesma altura surgia em Lisboa, no número 100 da avenida da Liberdade, a Maison Vegétarienne, um espaço que aplicava os princípios do vegetarianismo. No local onde se serviam refeições vegetarianas, faziam-se consultas naturistas e vendiam-se produtos dietéticos. Abriam e fechavam pequenos estabelecimentos ao sabor da procura. Discutia-se o poder curativo da dieta vegetariana e, em especial, do regime frugívoro – que defendia o consumo exclusivo de frutas frescas e secas – como uma forma de purificação do organismo e de causar o mínimo impacto na natureza.
Em eventos sociais, muitos não abdicavam do regime naturista. O casamento entre o editor da revista O Vegetariano e Julieta Ribeiro terá sido a primeira boda vegetariana do país, em 1914. O enlace foi divulgado precisamente por oferecer aos convidados um menu de frutos e não de «despojos cadavéricos».

A revista publicava fotografias de pessoas que tinham aderido ao vegetarianismo, até mesmo de crianças. Ensinava a fazer sementeiras, a cultivar frutos e a tirar o máximo de proveito dos alimentos crus na alimentação. Num anúncio pitoresco o médico Amílcar de Sousa aparece em cuecas a trepar a uma árvore com o slogan: «Só diz que o Bacalhau é bom, quem nunca provou destes frutos!».

Foi um sucesso o primeiro livro de receitas vegetarianas português, que Julieta Ribeiro publicou em 1916. Culinária Vegetariana, Vegetalina e Menus Frugívoros (editado pela Sociedade Vegetariana) esgotou e chegou à quarta edição! Antes dessa data, apenas se conhece um livro, O Cozinheiro Prático, que tinha uma secção de receitas vegetarianas traduzidas.



Comida de Grilo

Será ético comer animais? Provocar-lhes a morte? O debate sobre o vegetarianismo era intenso nos círculos intelectuais do início do século XX. O escritor Jaime de Magalhães Lima era um dos defensores acérrimos e desfiava argumentos de peso, citando grandes filósofos vegetarianos da antiguidade e a tradição milenar do vegetarianismo no oriente. Também o  poeta e escritor Ângelo Jorge se destacou ao escrever a novela naturista Irmânia. No Alentejo, o anarquista e sindicalista António Gonçalves Correia, conhecido pelas suas longas barbas e cabeleira revolta, comprava animais para os libertar. O sofrimento animal era um assunto polémico. Discutia-se o naturismo ao serão - em casas de chá, de frutas e de leitura - como hoje se discutem os assuntos do dia nos media ou na internet.

No filme O Pai Tirano, de 1941, há uma passagem que brinca com um dos personagens que «só come comida de grilo», e este responde que o grilo «é um bicho sábio, pois alimentando-se exclusivamente de vegetais, segue a lei sã da natureza». Era Eliezer Kamenesky, que participou também nos filmes A Revolução de Maio e O Pátio das Cantigas. Viajou pelo mundo e enchia salas com as suas conferências em defesa do naturismo e vegetarianismo. Fixou-se em Lisboa nos anos vinte, privando com Fernando Pessoa que chegou a prefaciar um dos seus livros. 
  
O interesse pelo vegetarianismo tinha esmorecido mas ressurgiu em força nos anos setenta. No  virar do milénio deu-se o boom das lojas dietéticas e dos restaurantes vegetarianos. Serão trinta mil os vegetarianos em Portugal, segundo um inquérito.

 Tirar a carne do prato não basta. É preciso que outros alimentos supram as carências proteícas, como a soja, tofu, seitan e as diversas leguminosas. À tónica da alimentação saudável, vieram juntar-se as razões ecológicas - tema escolhido para edição deste ano da semana vegetariana, assinalada em simultâneo em vários países.

* Com Nuno Metello

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