sexta-feira, maio 28, 2010

A felicidade também se come


A felicidade também se come

Usar os princípios ancestrais indianos da prática "ayurveda" na escolha dos alimentos adequados a cada um e na sua confecção saudável ajuda a viver em equilíbrio.

Bernardo Mendonça (www.expresso.pt)


Passam poucos minutos das sete horas da tarde. A sala de refeições do restaurante vegetariano Espiral, na zona da Estefânia, Lisboa, está perfumada por um discreto e indecifrável cheiro a especiarias. A rádio toca o tema 'I Shot The Sheriff', de Bob Marley. Embalados pelo reggae, dez mulheres e dois homens cortam vegetais e cozinham-nos sob a batuta do sheriff da cozinha, Wayne Fetaherstone, um professor holandês da Fundação A Arte de Viver (Art of Living Foundation).
Este é o último dia de um workshop de cozinha ayurveda que decorreu durante seis dias consecutivos em horário pós-laboral. O mote que levou esta turma, com pessoas entre os 30 e os 70 anos, a pagar 150 euros para se reunirem durante uma semana frente ao fogão e aos tachos é a vontade de "aprender a comer felicidade". E como se consegue isso? "Através dos princípios ancestrais indianos da prática ayurveda - palavra do sânscrito que significa a ciência da vida - e que aplicados na culinária nos ensinam a escolher os alimentos mais adequados a cada um de nós e a confeccioná-los de forma saudável para vivermos em pleno equilíbrio com o corpo, mente e espírito", explica-nos de forma resumida o chefe Wayne, de cabelos negros muito compridos, a denunciar na sua fisionomia e cor de pele os seus antepassados indianos. À sua frente estão várias senhoras a cortar vegetais. A bibliotecária Maria Luísa, de 60 anos, distingue-se pelo bom-humor e conversa fácil enquanto corta com mestria tomates aos cubos. Enquanto segue com a tarefa, Maria Luísa conta que se inscreveu neste curso não só para aprofundar o seu conhecimento sobre os alimentos, mas também para descobrir se a culinária ayurveda lhe traz maior satisfação que as receitas tradicionais portuguesas que cozinha em casa. Chegou a alguma conclusão? "Bem, tenho insistentes problemas de digestão e, com esta forma de cozinhar, o meu corpo tem reagido melhor, sinto-me mais leve e saudável." Este discurso multiplica-se em eco por toda a turma. Tanto eles como elas parecem convencidos e entusiasmados com esta forma indiana de cozinhar e comer.

Pratos "happy" 


Em volta dos legumes, está também a pintora e professora de educação visual Manuela Alegre, 59 anos, uma aluna que há muito estuda e pratica o ayurveda. "Está a ser uma experiência rica em sensações e sabores." É ela que nos traduz que para um prato ayurveda estar completo tem que ser composto por seis sabores diferentes: o doce, o amargo, o ácido, o adstringente, o picante e o salgado. "A reunião desses sabores numa só refeição inspira-nos, enobrece o prato e dá-nos prazer e tranquilidade. Claro que encontro alguns destes elementos nos pratos tradicionais portugueses, mas não me proporcionam o mesmo bem-estar físico." E continua a passar-nos a lição que aprendeu nesta semana: "Há pratos que nos deixam happy, ou seja, felizes, leves e em harmonia com o nosso corpo. Outros deixam-nos hipper, ou seja, excitados, hiperactivos. E ainda há aqueles que nos criam uma sensação heavy. Quero dizer, pesados, enfartados, cheios. A cozinha ayurveda proporciona-nos a primeira sensação destas três. É a escolha mais equilibrada", conclui, dando como exemplo o facto de ter aprendido a trocar o tradicional refogado composto por cebola e alho pelo refogado com assa-fétida (resina vegetal).
Novos hábitos. Ao lado, Luís Revez, 30 anos, desempregado, tenta transformar o grão cozido numa papa com o auxílio da varinha mágica. Mas o rapaz não se ajeita com a tarefa e acaba por passar o testemunho a uma colega. "Quero emendar os meus hábitos alimentares e tornar-me vegetariano. A carne torna as pessoas mais agressivas. E como eu, ultimamente, tenho-me tornado uma pessoa mais espiritual, ando a tentar adequar a minha alimentação a esta nova fase da minha vida." O livro de auto-ajuda "Poder do Agora", de Eckhart Tolle, foi o livro que lhe despertou a mente para a mudança de hábitos.

O poder dos produtos naturais


No final da aula, o chefe Wayne leva à mesa uma enorme pizza de polenta, feita à base de farinha de milho. Para acompanhar vegetais crus cortados em palitos e uma espécie de húmus. "Happy?", pergunta o chefe aos seus alunos. "Ohhh!", responde a turma num misto de espanto e agradecimento. Há quem comente que, apesar de tudo, nada se compara a um dos pitéus feitos na aula anterior: bolinhos de batata-doce com cacau e tâmaras picadas. "Hummm!", deixam alguns escapar. Wayne faz questão de esclarecer que cozinha ayurveda e cozinha indiana não são a mesma coisa. "Na indiana não são raros os pratos pesados e demasiado condimentados que podem provocar todo o género de distúrbios no corpo: digestões impróprias, úlceras, mal-estar geral, distúrbio da mente.
Com a tendência crescente no mundo inteiro do uso da comida pré-fabricada, também a cozinha indiana está a afastar-se cada vez mais dos produtos naturais. Ora, um dos princípios básicos da ayurveda é escolher alimentos o mais possível naturais. Frescos, naturais, sumarentos, apetitosos. É comer felicidade." E um bom bolo de chocolate não pode ser uma óptima forma de comer felicidade?, lançámos a provocação. "Como um de vez em quando. E sim, sabe muito bem. Mas saibamos distinguir as coisas. Existe o prazer imediato e o prazer que perdura. Às vezes achamos que comendo um bom bolo de chocolate fresco nos dá prazer. Mas depois percebemos que algum desconforto se segue depois do prazer de o comer. Dores de barriga ou dores de dentes, por exemplo. A sensação de prazer a longo prazo provém de alimentos que à partida não achamos os mais apetecíveis. E isso deve dar que pensar..."

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